Epidemia

Ebola: como o vírus 'burro' se tornou uma epidemia

Apesar de ser grave e altamente mortal, o vírus é rudimentar e possui uma estrutura fácil de ser combatida. Infectologistas ouvidos pelo site de VEJA acreditam que aspectos sociais e culturais são os principais obstáculos a serem combatidos para vencer o maior surto da história


O paciente com suspeita de ebola foi transferido de Cascavél (PR) para o Rio de Janeiro por volta das 5h desta sexta-feira (10)
O paciente com suspeita de ebola foi transferido de Cascavél (PR) para o Rio de Janeiro por volta das 5h desta sexta-feira (10) - Luiz Carlos da Cruz/Folhapress
O mundo enfrenta a pior epidemia de ebola da história. Até o momento, o caso suspeito do Brasil se soma aos 8 399 casos na Guiné, Libéria e Serra Leoa, com 4 033 mortes, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). A doença, fatal em quase metade dos casos, é numericamente pior que a epidemia de 1976, quando o vírus foi descoberto.
Em setembro daquele ano, uma misteriosa doença atacou o norte do Zaire, hoje república Popular do Congo. As vítimas tinham febre, diarreias, vômitos seguidos de sangramento e, irremediavelmente, morriam. Desesperado com essa situação, um médico que tentava combater a enfermidade enviou em uma garrafa térmica amostras de sangue para o Instituto de Medicina Tropical em Antuérpia, na Bélgica. Ela chegou ao cientista belga Peter Piot que, analisando o sangue em um microscópio, encontrou um vírus desconhecido.
Ele tinha uma estrutura gigantesca para os padrões virais e lembrava um vírus chamado Marburg, descoberto em 1967. Na Alemanha, esse patógeno contaminou 31 pessoas que trabalhavam em laboratórios com macacos infectados da Uganda. Sete pessoas morreram de febre hemorrágica.
Sem ter ideia de como a contaminação do novo vírus acontecia, Piot viajou até a aldeia africana, onde centenas de mortes estavam sendo registradas. Analisou novas amostras sanguíneas e decidiu batizar a nova doença de ebola, mesmo nome do rio que passava pela região.
Aos poucos, a equipe de cientistas descobriu que a transmissão se dava, principalmente, pelas injeções que mulheres grávidas recebiam com agulhas não esterilizadas. Os médicos também perceberam que muitas pessoas ficavam doentes após irem a funerais: o contato direto com os corpos repletos de vírus para a lavagem ou preparação dos mortos eram uma via importante de contaminação.
A primeira medida – até hoje a mais eficaz de combate ao vírus — foi o isolamento dos pacientes para interromper a transmissão. Assim, a epidemia, que infectou 318 pessoas e matou 280, foi debelada.


Vírus “burro” — Junto ao surto da República Democrática do Congo, outro foco de ebola apareceu ao mesmo tempo, no Sudão, com 284 casos e 151 mortes. A partir das primeiras descrições do vírus e das constantes pesquisas acerca de suas características, os cientistas descobriram que o ebola é dividido em cinco gêneros, de acordo com cada região onde ele se desenvolve. Assim, o agente do surto inicial e da epidemia que hoje está causando preocupação em todo o mundo é o Zaire ebolavirus. Há também o gênero Sudan, que causou as mortes no Sudão; o Tai Forest, encontrado na Costa do Marfim; Bundibugyo, visto na Uganda, e Reston, descoberto nas Filipinas.
Todos eles pertencem à família Filoviridae, que inclui outros dois gêneros além do ebola: Marburgvirus (que causaram a doença na Alemanha) e Cuevavirus (descoberto em 2011 em infeções em morcegos).
Os cientistas acreditam que todos os gêneros e espécies do ebola se desenvolveram em morcegos que comem frutas e insetos. Esses animais seriam seu hospedeiro natural — ou seja, os seres vivos em que o vírus melhor se desenvolve.
“Durante séculos o ebola deve ter ficado apenas entre os morcegos, infectando-os sem que eles desenvolvam a doença. Esse é o melhor cenário para os vírus, que conseguem sobreviver junto com seu hospedeiro. Quando ele chega a outros animais, como o homem, ele mata rapidamente, porque não está adaptado. Por isso, pode-se dizer que é um vírus ‘burro’: não consegue se sobreviver por muito tempo no ser humano”, diz Alexandre Barbosa, professor de infectologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp – Botucatu).
Acredita-se que o vírus chegou até o homem por meio da ingestão da carne de macaco ou morcego — que faz parte dos hábitos culturais de algumas regiões africanas — ou pela mordida de bichos infectados.
É um mecanismo semelhante ao vírus da raiva, temido em todo o mundo até o século XIX, quando o infectologista francês Louis Pasteur (1822-1895) criou a vacina contra a doença. “Assim como o ebola, o vírus da raiva também infecta morcegos e é transmitido ao homem. E, quando chega até nós, costuma ser altamente letal: sem tratamento, mata em dias”, diz Barbosa.
Ação — Apesar de mortal, o ebola é um vírus muito rudimentar, que possui uma estrutura razoavelmente fácil de ser combatida. Como a maior parte dos vírus, ele entra no organismo e permanece em incubação, período em que se trava uma guerra do sistema imunológico contra o patógeno. Essa etapa pode durar de dois a 21 dias. Após esse momento, o agente ataca as células endoteliais, que revestem o interior dos vasos sanguíneos. É quando se manifestam os sintomas da doença: febre alta, dor de garganta e muscular, fraqueza e desconforto. E é também quando acontece o contágio: a moléstia é transmitida se qualquer fluido corporal (sangue, suor, saliva ou sêmen) entra em contato com mucosas ou feridas na pele.
A partir daí, rapidamente, o vírus causa lesões nas células que, rompidas, levam às hemorragias características da doença. Náuseas, vômitos, dificuldades respiratórias e sangramento das mucosas (olhos, narinas, gengivas) são os sintomas mais comuns nessa etapa avançada.
Para combater ação do vírus, o organismo reage com uma infecção generalizada, que costuma atingir os órgãos vitais como fígado, rim, pulmão e coração, levando, em quase 50% dos casos, à falência múltipla dos órgãos e morte. Em geral, são apenas dez dias entre a manifestação dos sintomas e a morte.
Tratamento — Até hoje, o tratamento do ebola é o mesmo que o da década de 1970: isolamento, hidratação rigorosa e manutenção dos níveis de sais como potássio e sódio do organismo. Há tratamentos experimentais, como o soro ZMapp, desenvolvido por pesquisadores americanos e canadenses, que consiste em injetar anticorpos nos pacientes. A prevenção também ainda está em fase de testes — a OMS tem a previsão de que duas vacinas estarão no mercado até o início do ano que vem.
De acordo com Barbosa, mesmo causando uma doença tão grave, o ebola é incapaz de sofrer as mutações que impedem sua prevenção e tratamento, como é o caso do vírus da aids e da hepatite C. Por isso, a criação de vacinas ou tratamentos não serão grandes desafios científicos nos próximos meses.
“O ebola não consegue criar subtipos virais que confundem os anticorpos e medicamentos. Ele permanece constante e, por isso, é muito factível que, em pouco tempo, tenhamos uma vacina e também um soro eficaz para combate-lo”, afirma o infectologista.

Os vírus mais perigosos do mundo

Alguns são capazes de infectar milhões e provocar epidemias globais. Outros matam mais da metade dos infectados. Conheça alguns dos organismos mais terríveis do planeta:

Varíola

Criança etíope, em 1970, com o rosto coberto pelas feridas causadas pela varíola Quando surgiu: Entre os humanos, provavelmente há 10.000 anos, com o advento da agricultura
Origem: Não se sabe se a doença nasceu na África ou na Ásia. Análises de DNA mostram que o vírus se assemelha à varíola do camelo. Foi o primeiro vírus erradicado na história, em 1977, após uma massiva campanha de vacinação mundial.

Vítimas: Durante séculos, sem tratamento, matava 30% dos infectados. Somente no século 20, foram 300 milhões de mortes.

Por que é perigoso: Erradicado desde a década de 70, ainda existem cópias de seu DNA em laboratórios na Rússia e nos Estados Unidos. A população mundial não possui mais imunização contra o vírus. Pode ser transformada em uma arma biológica caso caia nas mãos de terroristas.

Gripe espanhola

Chicago, 1918: inspetores verificam se os varredores de rua estão usando máscaras Quando surgiu: Milhares de anos atrás. Hipócrates descreveu o que parecem ser epidemias de influenza no ano 412 a.C. Em 1918, atingiu entre 1 e 2% de toda a população mundial.
Origem: O termo influenza vem do italiano, que atribuíam à influência das estrelas os casos de gripe. Aliás, gripe é um termo francês criado no século 18. Até 1933, quando o vírus (H1N1, também originário de porcos, mas bem diferente do que causaria a gripe suína 90 anos depois) foi isolado, não se sabia o que a causava — especulou-se até que fossem bactérias.

Vítimas: entre 40 e 50 milhões de pessoas entre 1918 e 1919.
Por que é perigoso: A gripe espanhola assustou por ser a primeira gripe a matar jovens e adultos saudáveis — a doença se limitava a crianças e idosos. Para se ter uma ideia, 80% das mortes registradas no exército americano durante a Primeira Guerra Mundial foram causadas pela gripe, e não por ferimentos de guerra.

HIV

Imagem de microscópio colorida artificialmente mostra o vírus HIV Quando surgiu: Provavelmente na década de 1930, em Camarões e no Gabão.
Origem: Veio do consumo e manipulação de carne contaminada de chimpanzés na África. Apesar do vírus ter sido identificado apenas em 1983, foram descobertas amostras de sangue de africanos coletadas em 1959 e congeladas nos EUA que já continham o vírus.

Vítimas: 25 milhões de mortes desde 1981. Atualmente, há 33 milhões de pessoas vivendo com o vírus

Por que ele é perigoso: Já foi uma doença mais assustadora. Com novos tratamentos, sua mortalidade vem caindo. Foram 3 milhões de mortes em 2000 e 1,8 milhão em 2009. A maioria das mortes está localizada em países sem acesso aos modernos tratamentos antivirais.


H1N1

O vírus H1N1 Quando surgiu: 2009
Origem: Em 2009, o vírus encontrou um caminho para deixar os porcos e também infectar humanos, provocando uma pandemia a partir da América do Norte. O mundo ficou assustado com a rapidez com que a gripe suína progrediu (74 países em poucos meses). No Brasil, o antiviral Tamiflu, que combate a doença, sumiu das farmácias. Hoje, o H1N1 é uma das variantes anuais da gripe, junto com a H3N2 e a influenza B.

Vítimas: Em 2009, matou 44.100 pessoas nos EUA, contra 47.800 da gripe comum.

Por que é perigoso: Ele mata menos que a gripe comum, mas toma mais anos de vida. Enquanto as gripes sazonais matam mais pessoas idosas, a gripe suína atinge mais crianças e gestantes.

Causas sociais e culturais — De acordo com os especialistas em infectologia, a proporção que a epidemia tomou desde o início do ano tem a ver com a gravidade da doença, mas foram os aspectos culturais e sociais das regiões onde surgiu que potencializaram a explosão do número de casos.
O atual surto teve início em março, na Guiné e, em maio, se espalhou para Serra Leoa após um curandeiro infectado transitar entre os dois países. Profissionais de saúde que ajudam a tratar pacientes infectados estão entre as vítimas, como o médico que liderava o combate à doença na Libéria, morto no fim de julho. Dessa vez, o vírus conseguiu ultrapassar as áreas rurais e chegou às capitais, onda a densidade demográfica é mais alta. Isso tornou mais difícil isolar os pacientes e controlar a doença.
“Acredito que o que está acontecendo é uma perfeita tempestade: quando as condições individuais são um pouco piores que as normais e se combinam para criar um desastre. Com essa epidemia há muitos fatores desvantajosos desde o início. Muitos dos países envolvidos estavam saindo de guerras civis, sem médicos e com o sistema de saúde em colapso. Na Libéria, por exemplo, havia apenas 51 médicos em 2010 e muitos deles morreram de ebola desde então”, disse o cientista Peter Piot, em entrevista ao jornal britânico The Guardian.
Além das condições precárias dos países, crenças populares e falta de informação atrapalham o combate à moléstia. “Os aspectos sociais e culturais são dramáticos. Em algumas comunidades, existe o medo de levar o doente ao hospital — alguns acreditam que, como a maior parte chega ao hospital e morre, é a internação que causa a doença — e há também pessoas que se negam a tratar os doentes, com medo do contágio”, diz Marcelo Burattini, infectologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “O ebola é uma doença grave que preocuparia grandes sistemas de saúde. Mas, quando ela ocorre em países tão pobres, com modelos de saúde precários, a contenção da doença torna-se muito difícil. E, atualmente, há o grande fluxo de viagens aéreas, que podem espalhar a doença para qualquer lugar do mundo.”
Segundo Burattini, em um ambiente hospitalar que siga as medidas adequadas contra a doença (proteção dos profissionais de saúde, isolamento dos pacientes e esterilização dos materiais), o risco de contaminação é mínimo. Com a capacitação dos profissionais de saúde para reconhecer e diagnosticar a moléstia, e o tratamento adequado, o ebola deixa de ser um vírus ameaçador. "O período crucial para o vírus é entre a manifestação dos sintomas e o diagnóstico. Se for bem diagnosticado, ele não se espalhará", diz o infectologista.